quarta-feira, 16 de dezembro de 2009

Educação sem disciplina


KRISHNAMURTI: Qual é a função da educação? Nós somos educados? Porque mandais os vossos filhos à escola? Tende a bondade de pensar — pensemos juntos. Aqui também uma revolução se impõe na maneira de resolver o problema.

Qual é a função da educação? Não é a de preparar o estudante, o jovem ou a jovem, para enfrentar a vida, para viver sem temor? Meu espírito está nublado pelo temor, quando há competição. Há temor quando não sei enfrentar este vasto e complexo problema do viver. Há temor quando sou ambicioso. O homem feliz não é ambicioso, e só os ambiciosos são infelizes. A função da educação, pois, não é a de ajudar o estudante, para que cresça sem temor e possa enfrentar a vida inteligentemente, e não de acordo com a vossa inteligência, ou a minha inteligência, não de acordo com vossas idiossincrasias ou vossa condição religiosa, política ou econômica; para que cresça plenamente, integralmente, como um ente humano completo?

O interrogante pergunta: “como é possível educar uma criança, um jovem, um estudante, sem alguma forma de disciplina?” Qual é a finalidade da disciplina, para os velhos ou para os jovens? Porque nos disciplinamos, por imposição de outros ou de nós mesmos? Porque disciplinamos as crianças? Qual é a função da disciplina numa escola? Sois pais, felizmente ou infelizmente, e deveis sabê-lo. Qual é na vida, a função da disciplina? Disciplina não é o cultivo da resistência? A disciplina implica resistência, e a resistência produz o medo, não é verdade? Vede: tendes uma grande classe de alunos, uns quarenta ou sessenta. Como manter a ordem num grupo tão grande? Não é possível. Por isso recorreis à disciplina. Não estais interessados na educação; interessa-vos, tão-somente transmitir aos jovens certos conhecimentos, para que passem nos exames e obtenham empregos, e é só nisso que os pais estão interessados. Os pais não estão interessados na educação, e, para a maioria de nós, a educação está terminada depois de passarmos em todos os exames. Após isso, provavelmente nenhum de nós abre mais um livro. E se não abrimos, paramos também de pensar. — Vós vos consumistes inteiramente e estais vivendo automaticamente. Nessas condições, para compreendermos qual a função da educação, não é importante averiguarmos como se pode educar um estudante, um jovem, sem coerção, sem persuasão, sem o disciplinarmos, para que ele possa funcionar como um ente humano? Isso requer naturalmente uma escola muito pequena, uma classe pequena dirigida por mestres capazes de compreender o “processo” que faz nascer aquela inteligência, sem se recorrer à compulsão, sem a perene competição das notas e dos exames — sem esse processo em que o indivíduo se consome para os odiosos exames.

Senhores, vós credes nas almas; credes no progresso individual; e credes em tudo o mais; no entanto, fazeis exatamente o contrário, não é verdade? Impõe-se, pois, uma revolução total em nossa educação. Um jovem ou estudante não necessita só de conhecimento técnico para habilitar-se a obter emprego; requer-se algo mais, algo diferente: um ente humano, um ente humano integrado — e não um ente humano com uma constante batalha interior; um ente humano capaz de criar. Não se pode ser criador quando se está em competição. Não se pode ver a Realidade, se temos medo; e, em todas as coisas que estamos fazendo, em nossa educação, em nossa atividade política, em nossa obediência aos vários gurus que seguimos, etc., nisso tudo há temor, e não há criação nem felicidade, mas só inquietação interior. Como podem tais indivíduos criar um mundo novo e uma nova existência? Eis tudo o que a questão da educação sugere; e o mestre, o educador que não compreende tudo isso, recorrerá naturalmente a disciplina, por ser o meio mais fácil de controlar um grupo numeroso. Visto estarem os governos tão-somente interessados na educação em massa, a educação que conheceis impede a revolução, não é verdade? Sois muito bem educados, não sois? Sabeis ler, escrever, e ler os jornais matutinos. Nunca vos rebelareis, porque estais sempre a ver tantas facetas, que não podeis descobrir o que é verdadeiro. Por conseguinte para se inaugurar a educação correta, que requer uma revolução por parte do pai, por parte do mestre, necessita-se uma compreensão completa deste nosso problema de sabermos o que é um ente humano integrado — o que não requer uma definição, mas uma constante investigação desse todo integral. Essa investigação naturalmente começa quando estamos livres do temor, das bases psicológicas do temor, dos temores conscientes e inconscientes. A libertação mental do temor é meditação.

Krishnamurti – 19 de dezembro de 1953
Do livro: O Problema da Revolução Total

DIÁLOGO SOBRE CONFLITO


O conflito implica, sem dúvida nenhuma, contradição: contradição no sentimento, no pensamento e na conduta. Existe contradição quando desejamos fazer uma coisa e somos forçados a fazer o contrário. Para a maioria de nós, quando existe amor, existe também ciúme, ódio; e isso é também contradição. No apego, há angústia e dor, portanto contradição, conflito. Parece-me que tudo o que tocamos produz conflito, e tal é nossa vida, da manhã à noite; e mesmo quando dormimos, nossos sonhos são os símbolos perturbadores de nossa vida cotidiana.

Assim, ao considerarmos o estado total de nossa consciência, verificamos que nos achamos no conflito da autocontradição — a eterna luta para sermos bons, nobres, isto e não aquilo. Por que será assim? Tudo isso é necessário, ou é possível viver sem esse conflito?

Como disse, estamos examinando esta questão, não ideologicamente, porém concretamente, isto é, pondo-nos cônscios de nosso estado de conflito para compreendermos o que ele implica e nos mantermos em contato real com ele — não através de idéias, de palavras, porém pelo contato real. É possível isso? Como sabeis, podemos pôr-nos em contato com o conflito através da idéia; e, com efeito, estamos mais em contato com a idéia do conflito do que com o próprio fato. E a questão é se a mente pode abandonar a palavra e pôr-se em contato com o sentimento. E pode-se descobrir por que existe esse conflito, se não estamos cônscios do processo total do pensar — não do processo total do pensar de outrem, porém de nosso próprio pensar?

Indubitavelmente, há divisão entre o pensador e o pensamento, com o pensador lutando perenemente por controlar, moldar o pensamento. Sabemos que é isso que está acontecendo, e enquanto existir tal divisão, terá de haver conflito. Enquanto houver experimentador e experiência como dois estados diferentes, haverá conflito. E o conflito destrói a sensibilidade, destrói a paixão, a intensidade. E sem paixão, sem intensidade, não podemos “ir até o fim” de nenhum sentimento, nenhum pensamento, nenhuma ação.

Para irmos “até o fim” e descobrirmos a essência das coisas, necessitamos de paixão, intensidade, de uma mente sobremaneira sensível — não mente instruída, mente repleta de conhecimentos. Sem paixão, ninguém pode ser sensível; e a paixão, esse impulso para o descobrimento, se embota na batalha constante que se trava dentro em nós. Infelizmente, aceitamos como inevitáveis a luta e o conflito, e dia a dia nos tornamos mais insensíveis, mais embotados. E esse estado, em sua forma extrema, leva-nos à insanidade mental; mas, em geral, buscamos refúgio nas igrejas, nas idéias, e em coisas superficiais de toda ordem. Mas, é possível viver sem conflito? Ou estamos tão condicionados pela sociedade, por nossas próprias ambições, nossa avidez, inveja, a busca de êxito, que aceitamos o conflito como algo bom, coisa nobre, e de finalidade precisa? Seria vantajoso, penso, se cada um de nós pudesse averiguar o que realmente sentimos a respeito do conflito. Aceitamo-lo ou nos deixamos enredar por ele, sem sabermos como livrar-nos dele, ou estamos satisfeitos com nossos múltiplos meios de fuga?

Isso significa, realmente, investigar toda a questão do autopreenchimento e o conflito dos opostos, e ver se tem alguma realidade o pensador, o experimentador, com seu perene ansiar por mais experiência, mais sensação, horizontes mais amplos.

Só existe pensar, e nenhum pensador; só um estado de experimentar, e nenhum experimentador? No momento em que nasce o experimentador, graças à memória, tem de haver conflito. Isso se me afigura bem simples, se já: pensastes a seu respeito. Essa é a verdadeira raiz da autocontradição. Para a maioria de nós o pensador se tornou sumamente importante, e não o pensamento, o experimentador, não o estado de experimentar.

Isso, com efeito, implica na questão de que estivemos tratando noutro dia, ou seja, o que entendemos por ver. Vemos a vida, uma pessoa; uma árvore, através de idéias, opiniões, lembranças? Ou estamos em comunhão direta com a vida, a pessoa, ou a árvore? Penso que vemos através de idéias, lembranças e juízos e que, por conseguinte, nunca vemos nada. Assim, vejo-me a mim mesmo tal como “eu realmente sou”, ou vejo-me como “eu deveria ser” ou como “eu fui”? Por outras palavras, a consciência é divisível? Falamos com muita facilidade a respeito da mente consciente e da mente inconsciente, e das muitas camadas entre ambas existentes. Existem essas camadas, essas divisões, e elas se acham opostas umas às outras. Temos de percorrer todas essas camadas, uma a uma, para nos livrarmos delas ou tentarmos compreendê-las — maneira muito cansativa e ineficaz de resolver um problema — ou é possível varrermos todas as divisões, todo esse conjunto, e tomarmos conhecimento da consciência total?

Como dizia noutro dia, para nos tornarmos cônscios totalmente de uma coisa, necessita-se de percepção, visão, não colorida por idéia alguma. Ver uma coisa inteiramente, totalmente, não é possível quando existe motivo, um propósito. Se estamos interessados em alguma alteração, não estamos vendo o que realmente é. Se estamos interessados na idéia de que devemos ser diferentes, de que devemos melhorar o que vemos, torná-lo mais belo, etc., não somos então capazes de ver a totalidade do que é. A mente só está então interessada em mudança, alteração, melhoria, aperfeiçoamento.

Mas posso ver-me assim como sou, como consciência total, sem ficar enredado nas divisões, nas camadas, nas idéias opostas, existentes na consciência? Não sei se já alguma vez praticastes a meditação — por ora não discorrerei sobre esta matéria. Mas, se já o fizestes, deveis ter observado o conflito que se verifica na meditação — a vontade lutando para controlar o pensamento, e o pensamento a escapar-lhe sempre. É uma parte de nossa consciência — esse impulso para controlar, moldar, satisfazer-se, ter êxito, encontrar segurança; e ao mesmo tempo a compreensão do absurdo, da inutilidade, da futilidade de tudo isso. A maioria de nós tenta desenvolver uma ação, uma idéia, uma vontade de resistência, para servir como uma espécie de muralha em torno de nós mesmos, e dentro dessa muralha esperamos permanecer num estado de ausência de conflito.

Ora bem. É possível percebermos a totalidade desse conflito e permanecermos em contato com essa totalidade? Isso não significa permanecer em contato com a idéia da totalidade do conflito, ou vos identificardes com as palavras que estou empregando; mas, sim, significa estar em contato com o fato da totalidade da existência humana, com todos os seus conflitos de tristeza, sofrimento, aspiração e luta. Significa enfrentar o fato, “viver com ele”.

Como sabeis, “viver com uma coisa” é extremamente difícil. “Viver com aquelas montanhas” que nos cercam, com a beleza das árvores, com as sombras, a luz matinal, a neve, “viver com isso” realmente, é muito difícil. Todos tomamos conhecimento dessas coisas, não é verdade? Mas, vendo-as dia por dia, embotam-nos diante delas, como acontece com os camponeses, e nunca mais tornamos a olhá-las realmente. Mas “viver com a coisa”, vê-la cada dia como nova, com clareza, com sensibilidade, com apreciação, com amor — isso requer enorme soma de energia. E “viver com uma coisa feia” sem que essa coisa feia possa perverter, corroer a mente — isso requer por igual muita energia. “Viver tanto com o belo como com o feio” — como temos de viver, em nossa existência — requer descomunal energia. E essa energia é rejeitada, destruída, quando nos encontramos num estado de perpétuo conflito.

Assim, pode a mente olhar a totalidade do conflito, “viver com ele”, sem aceitá-lo, nem rejeitá-lo, sem permitir que o conflito nos deforme a mente, porém observando realmente todos os movimentos internos de nossos próprios desejos, geradores de conflito? Acho que isso é possível — não apenas possível, mas, quando penetramos mui profundamente o conflito, quando nossa mente está apenas a observar e não a resistir, a rejeitar, a escolher, eis o que acontece. Então, depois de chegardes até aí, não em termos de tempo e espaço, porém com a experiência real da totalidade do conflito, descobrireis por vós mesmos que a mente é capaz de viver muito mais intensa, apaixonada e vitalmente; e uma mente assim é essencial para que possa surgir na existência aquela “certa coisa imensurável”. A mente em conflito jamais descobrirá o verdadeiro. Poderá tagarelar incessantemente acerca de Deus, da bondade, da espiritualidade e tudo o mais, mas só a mente que compreendeu de maneira completa a natureza do conflito e, por conseguinte, se acha fora dele, só ela pode receber aquilo a que se não pode dar nome, aquilo que não pode ser medido.

A VACUIDADE DO ESPÍRITO

“Um recipiente só é utilizável quando está vazio, e um espírito cheio de crenças, dogmas, afirmações e citações, é na verdade um espírito estéril, uma máquina de repetição. Deste estado de vazio é que tentamos sempre fugir por todos os meios. E é por isso que a solidão é perigosa. Ela nos coloca em estado de receptividade. Procuramos, então, aquilo que chamamos de divertimentos, encher o silencio por barulho que, transportando-nos ao passado ou ao futuro, nos afastam do vazio. Mobiliamos a solidão com pensamentos defensivos. Mas esta vacuidade não desaparece. Nós a negamos mas não chegamos a destruí-la. Se você chegar à evasão total irá parar num asilo de loucos onde se tornará completamente estúpido. E é exatamente isso o que acontece hoje no mundo”. A única solução para não se temer esta vacuidade é não fugir dela e ver a realidade cara a cara, sem palavras, sem pensamentos.

“O vazio criador não pode ser produzido enquanto o pensador estiver atento e for observador, a fim de consolidar sua experiência. Se você quiser esta experiência, a terá. Mas não será o vazio criador. Será a projeção do seu desejo, a ilusão. Mas comece a observar, a ser consciente de suas atividades em cada instante, a olhar o conjunto do seu processo como um espelho, e à medida que se aprofundar chegará, finalmente, , a esta vacuidade que somente pode produzir a renovação. O estado de vazio criador não se cultiva; ele chega sem ser convidado. E somente nele pode acontecer a revolução criadora.”

Esta vacuidade se faz presente quando a vemos como um abismo. Quando a procuramos ela escapa. Ela não tem lugar, não tem solidez, e por isso mesmo, por causa desta fluidez, é que aparece somente àquele que não sabe.

“As idéias não são a verdade. A verdade deve ser vivida plenamente, de momento a momento. Isto é a verdade. A capacidade de abordar tudo, instante a instante, à maneira de um ser novo, não condicionado pelo passado, de maneira que não existam mais efeitos cumulativos agindo como uma barreira entre o eu e aquilo que é. A idéia só para quando há amor. E este não é memória nem experiência. O amor não pensa.”

A mobilidade da verdade precisa de uma grande mobilidade de ação acessível àquele que não se prende a nada, àquele que é livre como o vento por que viu a realidade. A rapidez de sua percepção engloba a verdade que é através de todas as evoluções. Não há mais fixidez, fórmulas, mas liberdade luminosa. Isento de toda formação, ele não é prisioneiro de nenhuma fórmula, não há mais busca ou espera da realidade. Os limites do pensamento foram ultrapassados, ele atingiu o inexprimível, o “sem palavras”. “Se a verdade era um ponto fixo, não era a verdade, mas apenas uma opinião. A verdade é o desconhecido e aquele que a busca nunca a encontrará, porque todos os elementos que a compõem pertencem ao conhecido. O espírito é o resultado do passado, um produto do tempo. É o instrumento do conhecido e não pode descobrir o desconhecido. Pode ir apenas do conhecido ao conhecido.”

Krishnamurti

Krishnamurti

.. “A energia é ação e movimentação. Toda ação é movimento e toda ação é energia. Todo desejo é energia. Toda percepção é energia. Todo pensamento é energia. Todo viver é energia. Toda vida é energia. Se essa energia é permitida fluir sem qualquer contradição, sem qualquer atrito, sem qualquer conflito, então essa energia é ilimitada, infinita. Quando não existe qualquer atrito, não há nenhuma fronteira para a energia. É atrito que coloca limitações a energia. Assim, uma vez depois de ter visto isso, porque é que o ser humano sempre cria atrito na energia? Porque é que ele cria atrito neste movimento a que chamamos vida? É pura energia, energia, sem limitação, apenas só uma idéia isso? Será que isso não tem realidade?”

Quando não existe qualquer atrito, não há nenhuma fronteira para a energia

Krishnamurti.